Manel, o cabra conversador...





Manel, que não era português, muito menos pescador, tinha sempre uma estória na ponta da língua. Juntava-se casualmente, ou propositadamente, uma roda à sua frente, para ouvir - ou assombrar-se, pelo menos -, com tanta miudeza desvairada. Numa dessas, certa feita, no distrito de Oiticica, Manel largou uma pérola daquelas que até hoje rola nos recantos mais obscuros da cidade. “Moçada, é o seguinte, quando era moleque, na lombada do meio, perto ali do serrote, quando ia buscar água pra mãe, um bicho apareceu; na verdade pulou, assim, bem na minha cara! Nunca tinha visto aquilo, metade cachorro, metade gente. Coisa de dois segundos, e desapareceu correndo pra dentro do mato. Eu, que não tenho medo disso, fui seguindo o bicho. Três dias antes tinha feito uma baladeira três oitão. A bicha era porreta! Arrumei uma pedra grande que cabia justinha na mão. Fui entrando, entrando... Só escutava o rebuliço na mata seca e a poeirada subindo. Nessa caminhada, como uma légua de distância, vi o bicho acocorado. Cheguei mais perto, coração quase pulou pra fora. Não me buli. Tava lá, arrancando com os dentes a cabeça e as carne de um capote e duas cabras leiteiras, do seu João Benedito, tudo junto, duma vez só. Matutei: ‘Se esse troço me achar aqui vai me comer também!’. E dava hora e mais hora, o brêu maior do mundo, e eu não conseguia sair - pra mim o bicho tava atrás de mim. Foi aí que deu o clarão, alumiô tudo. Vi tudim, parecia dia. Quase ceguei os zói. Desceu um negócio redondo, girando, e parou uns dez palmo de mim, mermo em riba. Fiquei bem quetim, rezando, mas com os zóio arregalado. Outro bicho saiu de lá, maior, magro, com as mãos grande, apontou pra frente; mais três menores vieram, correndo, voado, e pegaram o outro bicho lá. Botaram ele de cabeça pra baixo, deram um mói de peia nele, bem dada mermo, depois rebolaram uns dez metros. Foram simbora... Tava lá, o bicho todo entrevado, chorando; um choro véi triste, sentido... Tive foi pena do bichim. Me buli pras banda dele, sem baladeira sem nada, com os braço pra riba, dizendo: ‘Meu sinhô, faça nada comigo não! Só vim trazer esse pedaço de rapadura e prosear um tiquim pra mode o sinhô ficar bem!’. Nós ficou ali até amanhecê. Descobri que aquele bicho era uma caipora desgarrada, perdeu o território pra outro bichão lá. Tinha quebrado o pacto universal de proteger os animal, ainda mais tinha roubado nas área de proteção dos E.T.... É isso, meus amigos, o bicho se perdeu no meio do mundo de tristeza e medo. Nós também perdeu. Essa falta de tudo, hoje, é porque o meu amigo foi simbora. Mas deixou um recado: cabra safado, que andar bulindo nos bicho alheio, vai levar uma sova grande dos E.T., capaz de nem saber mais o nome da mãe!”. Manel se despediu de todo mundo efusivamente e, dada os furtos na região, foi cuidar das cento e vinte cabeças de bode no sertão, que dele, milagre, como dizia, ninguém mexia.     

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