RELOJ





Mãe-vó, com seu feitio indômito e doce, havia liberado o decreto: “Venga logo, que no vou tardar a ir-me!”, num portunhol arrastado. Cinquenta anos no Brasil e não teve jeito de tirar alguns trejeitos espanhóis, como o próprio venga ou reloj, que me parece terem sido propositalmente mantidos, porque eu mesma não tenho coragem de desequilibrar o meu português com o espanhol de seu ninguém – se quisessem me entender, que seja assim.
Nos meus quinze anos, mãe-vó me preparou para um porvir incerto, mas sedutor: “Sois do mundo, hija!”. Como ela, que almejou expandir, pensei em sair de Teresina, mais cedo ou mais tarde, para viver novas experiências, absorver costumes e novas culturas. Faz parte da sina beduína, viva; nosso sangue mouro latejante.
No dia do festejo, à moda cordobense, recebi um presentinho que somente seria transmitido a mim na data de sua passagem: o misterioso reloj, que pertenceu à Rainha Alcázar, ainda do período da invasão moura à península ibérica. Bom, assim ela cria. E eu, pirralha, inventava mil histórias na cabeça, que teria sido presente persa, para aplacar os ânimos beligerantes; que o relógio primitivo, de fato, não seria bem um relógio, mas um protótipo do que temos hoje (e nisso os árabes são incríveis).
Em terras brasilis, o que menos importava, para mim, era dar ares de boa moça; a anjinha prodígio da família, como titia Verónica teimou em me sujeitar à praga das convenções sociais nos jantares – longuíssimos –, da associação, dos clubes de “filantropia”, na traumática adolescência de minha vida.
Não queria ter vindo dessa forma, para isso. Nem me lembrei do famigerado reloj, que titia fez questão de divulgar em pleno velório – só faltaram o microfone e a caixa de som. Bateu palmas e falou, estilo coach controle emocional: “Queridos amigos e familiares, tenho uma coisinha importante a dizer: Mamãe, em sua eterna sapiência, deixou esse presentinho à sua valorosa netinha, a nossa querida Lia; um relógio que vem de nossa ascendência árabe. Portanto, algo de inestimável valor. O bastão pertence à Liazinha. Isso significa que, muito em breve, deverá ter uma filhinha para lhe prometer o relógio pela sucessão”. O fato mais bizarro é que estavam ali, propositalmente – claro convite de titia –, Roberto Carlos e Reginaldo. Bom, o primeiro dispensa comentários – pelo inconveniente do nome, se pode ter noção do curioso ambiente em que foi criado –; depois Reginaldo, um ser pouco afável, de rudes tratos. Ambos chegados à titia, obviamente a meu contragosto. Dois dos meus antigos namorados – onde pus minha cabeça nessa bendita hora?
Chacoalhei a cabeça em sinal de reprovação, pelo infortúnio de ver minha mãe-vó naquelas condições e ainda ser obrigada a passar por tal constrangimento. Peguei meu reloj, em honra à memória de mãe-vó, e, num acesso de raiva, coloquei-o no bolso e mandei todos se ferrarem, “seus putos carniceiros”, nesses mesmos bons e lisonjeiros termos. Em seguida, dei um beijo profundo em sua testa fria. Senti o cheiro de seu perfume de rosas; inebriei-me, quis ficar. Mas não titubeei, sei que ela faria igual. Larguei mais: “O presente não foi à toa. A senhora sabe quem sou. Não o deu à titia, essa megera metida a socialite, para não servir às suas mentiras deslavadas. Farei bom uso, vovó!”.
Na semana seguinte, contrariando os interesses mesquinhos de meio mundo de gente, como não terei filhxs, deixei-o, muito bem entregue, nas mãos do diretor do Centro de História Hispânica, na capital espanhola; a um amigo de longas datas. Mais tarde fui condecorada, com honras acadêmicas, por minha universidade em Córdoba, pois, inadvertidamente, talvez, vovó teria guardado o mais fiel registro de nossa formação social.
Noutro dia, sob os auspícios da luz divina, sonhei com vovó me bendizendo, e me amando, em beijos e carinhos sem fim. Só isso me interessa.



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