Frankenstein dos infernos



Arnaldo, um senhorzinho de meia idade – tautologia, o próprio nome denota, porque, nessa altura da vida, em pleno século XXI, não se ouve mais um menininho chamar-se Arnaldo; Deus nos livre dessa aberração –, poderia se safar pela aparência, quiçá. Na verdade, não tinha nada de bom no rosto, nem na mente, a não ser os cabelos de algodão. Resolveu, sem prevenção, fundir a cabeça de meio mundo de gente.

Ah, antes de tudo, o aludido senhor é meu pai biológico, esqueci-me de dizer… Pois bem, sem ao menos dar indícios de sua loucura, exceto pelo excessivo silêncio de uma vida inteira, arrumou, de modo velado, no subsolo da casa, uma espécie de “laboratório-vida”, como balbuciou no interrogatório. O dito laboratório consistia num espaço de, mais ou menos, trinta metros quadrados, com cama ou maca cirúrgica, tubos e mais tubos de ensaio, ferramentas das mais variadas e, igualmente, substâncias líquidas, etc., etc., etc.

Para um antigo professor de Biologia, conhecido pela sisudez, não seria nada demais. No entanto, o choque tem a ver com o contraste brusco da constatação, minutos após a descoberta, de que a criatura havia encarcerado, numa subsala, nossa tia Liduína. A mulher, dada como perdida ou morta em 1996, acometida por uma síndrome até então não diagnosticada – que vimos somente a conhecer depois do seu desaparecimento, a síndrome de Susac –, não tinha a capacidade de guardar sequer um acontecimento passado há cinco horas. Penso que é o caso mais grave relatado pela literatura médica. O monstro do meu pai – biológico, não se esqueça –, sabendo da condição peculiar da sua irmã, aprontou o ardil para estudar o seu cérebro através de terapias raras, excepcionalmente usadas pela medicina moderna, entre elas: a trepanação.

É óbvio que o caso está ligado, muito mais, a um grau absoluto de sadismo dele do que a uma causa filantrópica. Enjaulada como uma gorila, longe de tudo e de todos; encontrada nua, suja e com feridas dos pés à cabeça, minha tia não possuía qualquer sinal de sensibilidade, de conexão com o interlocutor, o primeiro a encará-la, o perito da polícia civil, inspetor Lopes, que foi constatar o caso in loco, com o seu aparato pessoal a tiracolo, curioso, e uma fila de jornalistas implorando exclusividade, oferecendo-nos valores astronômicos para expor, ainda mais, a nossa família.


Felizmente, a partir daí o enjaulado passou a ser o meu pai, o homem que me viu crescer e que, em momentos difíceis, soube disfarçar os graves problemas com balas, “para adoçar a vida”. Ainda, mantinha um hábito nada empático, desde que me entendo por gente lembro disso, esconder-se quando nos reuníamos, todos os irmãos, para lhe pedir algo ou mesmo conversar, talvez por medo ou vergonha do inominável ser que é.

Depois da morte da mamãe, a sua deusa monumental, a vida perdeu o sentido, para ele. Condenou-nos ao ostracismo forçado, eu e os meus irmãos, o Caio e o Fábio. Fomos criados pelos bondosos vizinhos, que se revezavam nas tarefas, achando que meu pai era um miserável, acabado pelo mal da morte; e um tio meu, o Otacílio, irmão do monstro, que não podia fazer muito por nós, já farto das obrigações, uma esposa doente e sete filhos. Dona Raimunda Ozira, a vizinha da frente, solteirona, avó por vocação, nos acolheu muito bem; muito mais do que devia. Dava-nos, garantida, uma refeição diária. Três bocas famintas para alimentar, como pássaros esquecidos no ninho, não é para qualquer um.

Senti-me perdida, de fato, quando dona Raimunda Ozira morreu. De mamãe, decerto pela precária idade, não entendi o ato da passagem; pensava que virar uma estrelinha, do jargão popular, poderia ser bom para mim, passearia pelos céus com ela. Dona Raimunda Ozira deixou-nos um buraco imenso, a fome. Mas a sua casa – só mais velha pude entender o significado do verdadeiro amor –, deu-me por testamento. Soube que não queria me ver na rua, entregue às baratas. E assim se fez.


O meu pai, aquele monstro, deu aulas até a véspera da morte da mamãe, para nunca mais. Abandonou tudo. Abandonou, inclusive, as nossas vidas. Transmitiu a sua fixação, certamente, à minha tia. No interrogatório, frio, falou que minha tia teria ido por vontade própria, pois que havia assinado um termo concordando com as suas experiências, nem que isso lhe custasse a vida, pelo bem da humanidade. O documento apresentado por sua defesa, logicamente, apesar da incerta data de comprovação, é uma fraude, minha tia nunca assinaria aquilo. Era como se um orangotango concordasse em morar numa cidade, por livre iniciativa – fiz a referência porque li, há tempos, um livro do Marcelo Rubens Paiva, do Orangotango Marxista.

Hoje, estou eu aqui, como curadora da minha tia, uma mulher incapacitada de tudo. Dócil, perdeu a criticidade; nem um sorriso dá. É um ser inanimado, mas ainda um ser. Suspeitam de lobotomia, de outros experimentos mais invasivos, sem certificação. Tais procedimentos fariam Nise da Silveira e Carl Jung não mais dormirem, se vivos fossem, tamanha a perversidade humana. Isso não os isenta de se revirarem nas suas respectivas tumbas. Mas pena, muita pena mesmo sinto de, no Brasil, não existir prisão perpétua para o Frankenstein dos infernos. Aplacaria a dor de eventualmente estar viva e ver a sua liberdade em detrimento da minha.


Comentários