− Maria,
sinto que não tenho mais muito tempo de vida. Não vou nem conhecer meu netinho. Ô, mulher, o moleque vai chegar sem avô
− No ato, o choro seco, lamurioso, sem
vida.
− Que é
isso, Otacílio, vira essa boca pra lá! Conversa besta. Tu tá bem com um desses troço que o povo fala: a depressão. Ontem mesmo
vi na televisão. É bobagem de quem não
tem o que fazer. Parece a Lurde, a doida da tua irmã, que arruma doença onde
não tem. Foi outro dia ao
posto pra dizer que tava com a espinhela caída. Resultado: de tanto ir, a enfermeira que atendeu deu uns puxão nas
costas dela, que a abestalhada tá mais entrevada
que nunca. Já disse, num inventa doença onde não tem, cabra; não inventa!
– É não. Eu
sinto aqui dentro, um rebuliço medonho, e é real. As tripa tudo brigando. Tem hora que vou lá no céu e volto. Não fico é
dizendo pra tu não me aleijar mais… Vê não, que
eu me bato pelos cantos; todo roxo nos braços, nas pernas?!
– Oxe, eu
também me bato! É velhice, Otacílio; é velhice. Vamo mudar de assunto, que o Rubinho deve tá chegando. Nada de atrapalhar a
alegria do nosso príncipe. Dentro de dois
meses, Gustavinho vai chegar e tu vai parar com essas frescura.
– Mulher,
pelo amor de deus, tu tá querendo é me tapear! Bem que o doutor falou alguma coisa horrível e tu não vai ter nem a compaixão
de me contar. Vou morrer sem saber de nada,
nadinha, feito peixe cativo, alienado. Me diga de uma vez, tenha dó! Me vejo no espelho, cego é que eu não tô!
– É a
velhice, Otacílio; é a velhice. Deixa de encucação, arruma o que fazer que
passa! Aposentadoria né doença, não. Escuta o meu
presidente, pelo menos uma vez… Bora lá, toma
esse suquinho de maracujá, pra ver se acalma os nervo!
– Não
aguento mais tanto suco. O bucho por acolá, mulher!
No suco, a
dose cavalar, para esquecer e resumir o que lhe resta: indevoção.
*Imagem: Saturno
devorando seu filho, Francisco de Goya (1819-1823), via Wikipédia.
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